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quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Peru que não foi peru de natal

Era uma vez , mas faz muito tempo mesmo , eu  tinha 13/14 anos e vivia no campo ,  no interior do Paraná ; e entre outras coisas , tínhamos também uma criação de perus.
Lembro muito bem como tudo começou , foi num dia de colheita de trigo , meu pai voltou para casa um pouco antes da hora do almoço e , aborrecido contou ter a colheitadeira passado por cima de um ninho de peru e esmagado a perua e seus ovos, dos quais , apenas um permaneceu intacto e estava em suas mãos.
Tristes mas cheios de esperança colocamos este ovo no ninho de uma galinha choca e ,  um dia e meio depois  nascia  uma criaturinha que faria parte de minha vida nos próximos 5 anos .
Como era de praxe , toda vez que , por algum motivo houvesse um filhote órfão ou sobrando, eu poderia criá-lo como guaxo , e foi o que aconteceu .
Peru , quando pequeno , é bastante sensível , então para evitar que ele ficasse exposto ao tempo coloquei-o junto com meus  coelhos que tinham sido presente do meu  irmão Laurindo ...
Toda vez que eu abria a portinhola da casa dos coelhos ele vinha ao meu encontro gritando cuió cuió , por ser todo desengonçado (peru jovem é desengonçado) parecia ser feito de molas e acho que foi até meio que  inconsciente mas , quando dei por mim ,  já estava chamando ele de Cuió de Mola .  
Com o passar do tempo  Cuió de Mola cresce forte e algumas vezes quando eu abria a portinhola ele estava de pé em cima de um dos coelhos que ,  deitados  pareciam não se importar com o peso do amigo.
O tempo foi passando , até que um dia logo cedo  Cuió de Mola veio ao meu encontro feliz e saltitante, com um coelho recém nascido em seu bico ,  percebi então que havia chegado a  hora de tirar-lo dali.
Os meses haviam passado e Cuió de Mola era agora um belo peru adolescente que de desengonçado não tinha mais nada , corria solto pelo pátio e cada vez mais se aventurava no meio das plantações...

No sítio , entre outras coisas ,  plantávamos também  tabaco e ; todos os dias , antes do sol secar o orvalho das folhas , o meu pai entrava na plantação à procura de possíveis lagartas que pudessem estar danificando as plantas.
Eu que gostava de sentir o cheiro de tabaco molhado de orvalho ,  ia atrás de meu pai em meio a plantação e o Cuió de Mola me acompanhava . A princípio meu pai até reclamou dizendo que estávamos quebrando as folhas das plantas , mas , depois passou a alimentar o Cuió com as lagartas verdes e gordas que encontrava nas plantas de tabaco . E foi assim que em pouco tempo meu pai e Cuió  tornaram-se amigos .
 Cuió gostava de me seguir por onde eu andasse  e estava sempre pronto a me defender toda vez que  necessário fosse . Bastava eu gritar bem alto :  Cuió Cuió ,  ele respondia glu-glu-glu e vinha correndo com o máximo  de velocidade que conseguia alcançar , fazia círculos em minha volta com as suas asas poderosas abertas riscava o chão enquanto gritava glu-glu-glu-glu  (tipo como quem diz ...ninguém vai tocar em você ,  eu estou aqui para te defender) na maioria das vezes era brincadeira.
O tempo foi passando e Cuió , agora já totalmente adulto passava parte do dia com os de sua espécie comendo lagartas e outros insetos que encontravam em meio as plantas . Antes do  entardecer voltavam  para casa  quando eram então  alimentados e depois dormiam no galpão.
 No entanto , um certo dia no final da tarde os perus não voltaram . Começou à escurecer  e ,  com o coração batendo forte gritei :  Cuió ,Cuió ...  nada ,  chamei outra vez e , demorou um pouco e o silêncio foi quebrado por um  glu-glu-glu fraco, quase inaudível . Saí correndo pelo campo rumo ao sítio vizinho ,  em direção ao som de sua voz .
 Cuió foi o primeiro que eu avistei ,era o que tinha conseguido chegar mais próximo de casa ...  60 perus adultos e todos eles caídos , todos envenenados, alguns já estavam mortos .
 Nosso vizinho do lado esquerdo , havia pulverizado veneno para matar as lagartas de sua plantação de soja , as mesmas lagartas que os perus tanto gostavam de comer .
 Toda vez que meu pai pulverizava as plantas fazia isto logo cedo ou no final da tarde , para evitar os ventos fortes e ,  neste caso os perus ficavam presos , justamente para evitar intoxicação  e,  nos últimos anos quase que não foi necessário , pois os perus mantinham as plantações livres de pragas. Quem poderia imaginar que o nosso vizinho tivesse pulverizado veneno na hora  em que estávamos  todos dentro de casa , na hora do almoço e ninguém viu nada.
  Soluçando  limpei as lágrimas que caíam  e me impediam  de enxergar .
  Quando me aproximei de Cuió , ele levantou a cabeça sem conseguir emitir um único som . Chorando eu peguei ele no colo e saí correndo para casa ,  no meio do caminho encontrei  meu pai que veio me procurar , pois pressentira que alguma coisa estava muito errado.
Parecia um pesadelo e com lanternas procuramos em meio à  plantação de soja até encontrar todos que ainda estavam vivos , um a um os sobreviventes foram levados e colocados no pátio na frente de casa .     Não tenho certeza como foi que o meu irmão Laurindo ficou sabendo , pois ele morava no segundo sítio depois do nosso , não sei se eu fui chamar ou se ele ouviu meus gritos , só lembro que ele e minha cunhada também estavam lá em casa ajudando com os perus .
Meu pai usou um martelo para  picar uma grande quantidade de gelo , colocou em uma panela e depois misturou meio pacote de açúcar. Com colheres abrimos o bico dos animais e forçamos a mistura goela abaixo ... Cuió de Mola foi o primeiro a receber o antídoto , ficou ali caído e toda vez que eu chegava perto ele fazia um esforço enorme tentando levantar a cabeça sem conseguir. Perdi a conta de quantas vezes fiz ele engolir açúcar e gelo ...
Quando o gelo que tínhamos em casa acabou , corri para o vizinho do lado direito. Nunca antes eu tinha atravessado em meio a uma plantação de soja  sem ter medo de cobras que porventura  estivessem ali , no entanto , naquela noite  acho que não pensei em nada , estava apavorada . Aproximei-me por detrás da casa , subi em uma das  arvores e então chamei pelo casal que vivia ali . Os cães começaram a latir e cercaram a arvore em que eu estava ,  não demorou muito o nosso vizinho , um senhor já de idade bastante avançada , veio ao meu encontro ...
Saí dali carregando gelo e para garantir, um tanto  de açúcar.
Foi uma noite longa ... Alguns dos perus  não resistiram e acabaram morrendo antes do amanhecer , mas a grande maioria , reagiu bem ao tratamento , e antes do sol nascer  Cuió de Mola  levantou e andou em  minha volta fazendo  glu-glu-glu-glu ....
 Deixamos eles presos por dois dias , com muita água , muita cebolinha verde e milho . E quase tudo voltou ao normal .
Meu pai , depois do que aconteceu  estava decepcionado e não quis mais criar perus , disse que seria impossível  evitar que eles andassem pelas plantações vizinhas e , assim sendo , poderiam outra vez comer lagartas envenenadas . Passou algum tempo e , entre almoços de domingo e uns tantos que meu pai doou para serem leiloados na igreja e em festas da escola , sobraram  bem poucos.
 Cuió tornou-se mais  caseiro , uma espécie de guarda junto com os cachorros , estava sempre por perto .
 Um dia , eu estava brincando com  o meu sobrinho Marciano que,  tinha então dez meses de idade e o Cuió de Mola , como de costume,  andando atrás de mim pelo pátio fazendo glu-glu-glu-glu .
 E então aconteceu ... Cuió de Mola pulou bem alto tentando alcançar e bicar o bebê que estava em meus braços ,  muito rápida , saí correndo e ele atrás de mim . Depois daquele dia, toda vez que os meus sobrinhos estivessem passeando ou passando as férias escolares conosco no sítio , ciumento ,  Cuió os atacava . A Rosi ,  Léia , Márcia e Fábio já eram maiores e até achavam engraçado correr para escapar do Cuió de Mola , o problema era com o Victor e Marciano ,  pois eram ainda muito  pequenos .  Alguns meses depois nasceu a Fabiane ... e o Cuió não dava trégua.
A princípio ,  quando as crianças estivessem conosco , Cuió passava boa parte do dia  trancado no galpão , mas  isto era cruel  e ele reclamava muito fazendo glu-glu-glu . Então meu pai teve a ideia de coloca-lo no pasto , no cercado dos cabritos e carneiros , pois ali , além de ser um espaço bem grande com muitas arvores e uma pequena área coberta , o arrame farpado era bem  próximo um do outro, evitando assim , uma possível fuga  já que , Cuió de Mola  estava acostumado a entrar e sair , quando bem quisesse , no cercado do gado .
Cuió amava as férias com cabritos e carneiros e logo no inicio , deixou bem claro quem mandava ... Todos os dias eu levava comida extra e abraços.
E assim os anos foram passando , e entre ; estudar , andar de bicicleta , cuidar de animais e fugir com minhas sobrinhas para tomar banho no rio escondidas ... eu fiz 18 anos.
Agora Cuió de Mola já era mais do que adulto e , algumas vezes implicava com  pessoas ou até mesmo , com outros animais .
 O mais novo dos meus irmãos , estava nos visitando e  rastejou por  baixo do galpão  para coletar ovos de pato , quando vinha saindo , a metade do corpo ainda por baixo da construção ... Cuió atacou , com garras e bico . Eu corri , peguei e prendi  Cuió de Mola no galpão ,  meu irmão sangrou um bocado e depois disto os dois nunca mais foram amigos ...
 1981 não foi um bom ano, em maio , eu faria 19 anos e no começo de fevereiro ,  fui estudar e  morar com uma tia no Rio Grande do Sul .
Cuió de Mola não reagiu muito bem à minha ausência , ficou bastante agressivo e então foi forçado a passar bastante tempo no cercado dos cabritos .  Agora só obedecia ao meu pai e entre outras coisas que aprontava , aprendeu a fugir do cercado e foi procurar encrenca com os cachorros do casal de velhinhos , nossos vizinhos.  Quando isto acontecia  durante o dia não tinha problema , porque depois de um tempo , ele cansava de perturbar os cães e voltava para casa . Pior era , quando ele escapava ao amanhecer e ia direto para o sítio vizinho , esperava a dona da casa  tirar leite das vacas , e então, ficava na frente da porta brigando com os cães e sem deixar ela sair do estábulo ... Não tinha outro jeito ,  o nosso vizinho  tinha que vir a nossa casa ,  chamar meu pai  que , que voltaria com ele à  sua casa  para buscar o Cuió de Mola .  E isto acontecia mais ou menos uma vez por semana .
Acho que foi em julho , depois de dez anos de namoro , meu irmão mais novo ficou noivo , eu soube .
Em outubro o meu pai adoeceu , sendo submetido à uma cirurgia de emergência , eu voltei correndo para casa , direto ao hospital ... A primeira coisa que meu pai me contou no hospital , foi que , o meu irmão serviu  o Cuió de Mola para os convidados em seu noivado .  Papai disse ainda , que meu irmão fez isto sem o consentimento dele , e que ele não comeu da carne do Cuió . Aparentemente, ninguém conseguiu comer o Cuió de Mola , pois , devido a idade, sua carne era muito dura .
Triste e revoltada , coloquei toda energia no desejo de que o noivado desse errado. Não tenho orgulho do que fiz , mas eu acho que deu certo.
Ainda no mesmo ano  em uma festa de natal , o meu irmão conheceu uma moça , ficou louco de paixão , e abandonou a noiva ... Em seguida , foi viver com seu novo amor , mudaram-se para Maringá , onde nasceram  minhas sobrinhas Claudia e Ângela .

                                               FIM

13 comentários:

  1. Adorei tia, ficou muito criativo, parabéns!!!

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  2. Adorei a narrativa, parabéns, quero terminar de ler a tradução...

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    1. Obrigada pelo incentivo querida .
      A tradução já foi postada , divirta-se.

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  3. Legal!Gostei da tua iniciativa.vc pode até publicar um livro.Te desejo Sucesso!

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  4. Adorei, mais foi maldade o que o seu irmão fez com o cuió de mola , ele só estava com saudades . Bjinhos

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    1. Por isto mesmo que o noivado não deu certo ... a minha sobrinha acabou de dizer que assar o Cuió era bem a cara do pai dela . kkk... hoje eu até entendo. bjus

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  5. AMIGA MARITA PUDELI:
    Que seria a nossa vida sem os fatos que fazem a nossa história. - Entre tantas outras coisas que se nos aconteceu, sempre nos lembramos de vários deles que mais nos marcou..., e, por isso, ficou na memória. - Ah..., essa nossa memória fantástica..., que..., como o Mecanismo de Defesa do Organismo, é tão sábia que seleciona somente o que nós devemos nos lembrar. - ... Outros fatos e acontecimentos que se nos entristeceu..., se quisermos lembrar, só mesmo fazendo um esforço, que nem vale a pena. - Parabéns amiga Marita Pudeli. - ... ESCREVER É REVIVER. - É nos remeter ao passado numa forma saudável de darmos mais conhecimento de que tudo na vida vale a pena. VIVER FELIZ É A NOSSA META. Abraço, Bosco Freire de Andrade.
    Como escreveu Martha Medeiros: - “Que a gente siga cultivando um pouco da pureza, inocência e confiança que a gente tinha aos 8 anos, coisas que acabam se perdendo com a brutalidade do cotidiano. Se eu não sinto saudade da infância, é porque essa inocência de certa forma ainda preservo, porque sem ela ficamos muito ásperos em relação a tudo. Então, sigamos inocentes, mas sem deixar de curtir a magnitude de ser gente grande.”
    É isso. E vamos que vamos... ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE.

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  6. “Há caminhos que a gente precisa percorrer em função da passagem do tempo. São difíceis. Os passos parecem resistir às tentativas de movimento. Aprendi uma coisa, porém: se o passado acumulou boas vivências e energias, o futuro, inexorável, pode ser permeado por sorrisos, originários das boas lembranças. E o inevitável é inevitável.” (Lucia Aquino).

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